Tenho uma profunda admiração pelas comidas simples, de camponeses, pastores e caçadores; são sabores hoje pouco explorados, um tanto esquecidos, mas que são repletos de vigor, com o gosto da terra e do básico. Ao contrário do que muitos pensam, a carne de caça não é cheia de gorduras e não tem um gosto intragável; pelo contrário, esse tipo de carne tem baixíssimo teor de lipídeos e altos níveis proteicos.
A carne do javali, por exemplo, é bem mais magra que a do seu primo domesticado, o porco, além de um pouco mais adocicada, acinzentada e marcante. Outro interessante exemplo é a carne de cervo, que possui níveis de gordura ainda mais baixos que o peito de peru, e ao mesmo tempo lembra um bom bife bovino, porém mais adocicado e suculento.
A carne de caça exige preparos um pouco diferentes da carne convencional, de pastagem, granja ou pastoreio; lembre-se que animais de caça caminham praticamente o dia todo à procura de alimento, fugindo de predadores e cuidando de seus filhotes, portanto, é muito natural que esse tipo de carne seja um pouco mais dura e adocicada, em função da alimentação à base de bagas, frutos e raizes.
O preparo pode ser feito de duas maneiras: a primeira delas, e muito mais tradicional, é feita de longas marinadas, utilizando ervas mais rústicas, como o alecrim, o estragão ou a lavanda, vinho branco cítrico (Blanc des Blancs, Riesling ou Torrontes), azeite não filtrado, alho e bagas rústicas como o zimbro. As longas marinadas servem para amaciar a carne através da maceração das fibras, deixando-a mais macia, além de temperar a carne com sabores bem naturais, semelhantes àqueles que os animais se alimentam na própria natureza. Essas marinadas devem ser prolongadas, com tempo mínimo de 18 horas, chegando, em alguns casos, a até 48 horas.
O outro tipo de preparo é o de marinadas leves, bem superficiais, estilo adotado pelo chef italiano Igles Corelli; esse tipo de marinada é bastante rápida, de modo que a carne de caça mantenha seu sabor natural praticamente intacto. Os ingredientes são os mesmos, porém o tempo é reduzido para cerca de 30 minutos. É importante lembrar que esse estilo de preparo exige um certo treino do paladar, evitando assim decepções com relação à docura da carne e seu sabor aparentemente sem sal.
Para prepararmos o "Cinghiale al profumo di lavanda", prato apreciado especialmente na Umbria, precisaremos:
- 1 kg de lombo de javali, cortado em 4 pedaços menores de igual tamanho.
- 3 colheres de sopa de flores de lavanda (secas ou frescas);
- 3 flores inteiras de lavanda para finalização;
- 4 dentes de alho;
- 2 cálices de vinho branco seco (Blanc des Blancs, Riesling ou Torrontes);
- 1/2 copo de azeite não filtrado;
- Pimenta do reino ralada na hora;
- 1 pequeno ramo de alecrim.
- 1 cabeça de alho inteira para decoração;
- Groselha "in-natura" para decoração do prato.
Com ajuda de uma faca bem afiada, corte a gordura do javali em losangos, como indicado na foto ao lado; em seguida, unte a gordura com um pouco de azeite e rale a pimenta do reino, massagendo a carne.
Com a ajuda de um cadinho, ou almofariz, triture as três colheres de flores de lavanda com um pouco de azeite. A lavanda liberará um perfume maravilhoso durante o processo de cozimento, além de temperar a carne com um gosto cítrico; é importante lembrar que a lavanda é "parente" próxima do alecrim, e pode subsitituí-lo com sucesso nas marinadas. A grande vantagem de utilizarmos a lavanda é o sabor levemente adocicado e crítico que ela confere à carne, com um fundo de perfume.
Muitas pessoas me perguntam como e onde encontro a lavanda; na verdade planto minha própria lavanda, na varanda do meu apartamento, mas você poderá encontrar as flores secas e igualmente perfumadas em empórios, ou mesmo no Mercado Municipal da Cantareira, o Marcadão de São Paulo.
Agora que as flores já estão trituradas com azeite, acomode todos os pedaços de lombo dentro de um refratário; adicione o vinho, o restante do azeite, os dentes de alho cortados ao meio e as folhas de alecrim. Reserve as flores inteiras da lavanda para o momento do cozimento, e não adicione sal à marinada. O sal deve ser evitado nesse momento, já que ele retira todo o suco da carne em marinadas longas.
Cubra o refratário com filme plástico e deixe na geladeira por 24 horas, virando a gordura para baixo por algumas vezes.
Depois do tempo da marinada, retire os pedaços de lombo de dentro do refratário, secando cada um deles com papel toalha. Não jogue fora o caldo da marinada, pelo contrário, coe e reserve, pois ele será utilizado no processo de cozimento.
Acomode os quatro pedaços dentro de uma forma metálica, mantendo a gordura para o lado de cima; nesse mesmo momento pegue a cabeça de alho inteira, envolva-a com papel alumínio, acomode-a também dentro da assadeira e cubra tudo com um pedaço de papel alumínio.
Leve ao forno baixo por 1 hora, adicionando um pouco do caldo da marinada a cada 20 minutos, de modo que os pedaços fiquem sempre umidecido. Depois de 1 hora em forno baixo, remova o papel alumínio, adicione o restante da marinada e ponha um punhado de sal grosso sobre a camada de gordura. Esse é o único momento em que o sal será adicionado à receita.
Acomode as três flores de lavanda inteiras sobre a carne, para que liberem o perfume durante a fase final de cozimento. Na verdade o javali já estará cozido depois de 1 hora em forno baixo, e agora ele ganhará uma cor marrom.
Para isso, aumente o forno para um temperatura bem alta, e aguarde aproximadamente 30 ou 40 minutos, verificando a assadeira para que a carne não queime, mas que fique apenas dourada.
Caso queira, você poderá servir os pedaços inteiros, ou cortá-los em fatias. Uma salada de agrião temperada com azeite, sal e limão acompanha esse prato muito bem.
Outra sugestão para servir é com arroz branco e lentilhas; para decorar sugiro utilizar bagas de groselha "in-natura"; além de bonitas, também combinam bem com a carne do javali.
Está pronto; para acompanhar sugiro um tinto robusto e forte, como um italiano Sangiovese Grosso, ou um Malbec argentino.
Acho que assim está bom pra começarmos o ano.
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